segunda-feira, 30 de junho de 2008

Dead souls

[Por Fernando Lalli. Originalmente postado em meu journal.]

Desde criança sou fascinado por Shopping Centers, mas hoje eu odeio, muito especificamente, o Shopping Center da minha cidade. Não odiava há pouco tempo, mas quanto mais aquilo abriga lojas de grife e seus preços de três dígitos em pedaços de materiais sortidos transformados sob confecção de quinta categoria, mais atrai o rascunho tosco de classe média que floresce no Vale do Dinheiro Paraíba. Essa gente que vê no engarrafamento das ruas o progresso da cidade, ao invés de um problema crônico de falta de espaço e planejamento. Essa gente que almeja a compra de um Hyundai Tucson. Ou de um Audi. Ou alguma dessas merdas, que seja. Essa gente que lota o estacionamento do Shopping Center e pára o carro em cima de calçadas e gramados. Não dá mais para andar pelos corredores daquele lugar e não ser metralhado por olhares a procura de te reconhecer como um de seus pares. Tento correr. Berra, animal aflito. É a minha vontade. Quanto mais eu ando por entre aquela gente ansiosa por glamour urbano, mais queima em meu peito um violento rompante de Síndrome de Tourette - domado sabe-se lá como, ao preço da rigidez de minhas cordas vocais.

Eu quero comprar uma bermuda, mas as lojas em Julho só vendem calças. Quero comprar um tênis de corrida, mas entrar naquelas lojas coloridas e muito iluminadas com atendentes solícitos-e-jovens-e-cheios-de-vida não me atrai nem um pouco. Eu e minha corporeamente marcada inabilidade de convívio com hábitos saudáveis de exercício com certeza não passariam incólumes ao crivo daquela gente malhada, linda e cheia de vida.

- Está procurando um tênis para se exercitar?

Sempre quando entro numa grande loja de calçados eu me lembro por que nunca compro nelas. Eu gosto é das lojas pequenas nas quais o máximo que o vendedor diz é perguntar se eu também não aceitaria levar alguns pares de meias junto. Nas lojas pequenas do centro eu podia levar um tênis rosa da Hello Kitty número 43 e eles simplesmente passariam meu cartão e me deixariam ir em paz. EM PAZ! PORRA, TAUBATÉ, ME DEIXA EM PAZ. Eu só quero seguir meu caminho medíocre - medíocre aos olhos de vocês, que fique bem claro. Quero comprar algumas vestimentas para começar a fazer academia - do outro lado da cidade, onde ninguém pode me ver. Gostaria muito de ter o benefício de ser solenemente ignorado por vocês, se me permitem.

Depois da terceira loja, encontro um ex-colega de trabalho. Numa cidade de 250 mil habitantes, cuja única diversão noturna é freqüentar aquele maldito Shoppping, até que demorei pra encontrar alguém familiar. Foi impossível evitar o contato.

- E aí, Fernandão?
- Tudo certo? Indo jogar uma bola? - uma pergunta retórica bastante estúpida; ele trajava chuteiras e meiões até a canela. Não que eu não goste do cara, mas definitivamente não estava afim de papo. Procurei não ser mal-educado, embora o meu mal-jeito quando estou mau humorado seja espalhafatoso. Ele se despediu e foi jogar bola. Então dei não mais do que vinte passos e aconteceu de novo.

- Bôi!

Um camarada da época do 2º grau. Omita-se a identidade. Promessa de papo longo. Fazer tantos amigos na adolescência para crescer e descobrir que, na maioria dos dias, você odeia pessoas. Ganhei na loteria.

- Bôi, tudo bem, cara?
- Tudo certo. E contigo? Fazendo o quê da vida?
- Continuo na fábrica, lá, na correria - 90% das pessoas em Taubaté trabalham em uma fábrica ou em alguma empresa que presta serviços a uma. E 100% delas estão na correria. - E você tá trampando onde?
- Numa produtora de vídeo. Me formei para escrever, mas acabei trampando com edição de vídeo. É o que me rende uns trocados, hoje.
- Mas você não vai lá pra frente da câmera e faz uns comentários?
- Não, nunca. Meu negócio é fazer as engrenagens funcionarem nos bastidores.
- Quer saber? Eu sempre imaginei você como comentarista. Você é um bom comentarista. Tipo, você é um cara que tem uma opinião diferente do resto, não vai com a maioria.
- Fico feliz em saber que essa é a imagem que ficou de mim.
- Quando eu vejo aquele José Nêumane Pinto no SBT, eu lembro de você na hora. Ele descendo o sarrafo em todo mundo, é a tua cara.

"José Nêumane Pinto descendo o sarrafo em todo mundo" é a visão análoga da minha persona de anos atrás. Meus traumas surgem como formigas no chão.

- É mesmo? Eu pareço o José Nêumane?
- Haha, não fisicamente!

Ufa.

- Você parece com o José Nêumane porque é cheio de opinião. Ouve o que todo mundo diz, mas depois vai lá e dá a sua opinião. E geralmente discorda.

Ele me deseja sucesso, me cumprimenta e vai embora. Ele me lembra o quanto a educação mecânica que nos dão é capaz de destruir uma pessoa; essa obrigatoriedade de todos nós virarmos adultos tão cedo. Aos 21, temos que ter uma faculdade e um emprego, não importa se nossos ossos do crânio ainda nem estejam devidamente colados. Esse rapaz era muito mais cheio de vida e alegria. Hoje tem um emprego mediano, deve ter concluído a faculdade que tinha planejado fazer para assumir o negócio do pai, e vive essa vida de, QUE PUTA MERDA, passear no shopping às segundas, porque não há mais nada a fazer. E que torce por quem ainda tem veias pulsantes paar que faça algo de útil de suas vidas. Nós, os "Josés Nêumanes", no caso, que batem a cabeça contra o muro diversas vezes ao dia pela simples incapacidade da prática do auto-engano.

As pessoas não ficam mais fortes e iludidas quando se adéquam ao sistema. Pelo contrário, é perdendo a luta contra o medo que elas viram esses fantasmas de gente que eu conheci tão promissora, tão vívida, e hoje tão comum, perdida, diluída entre a população comum, besta e insignificante. Esse meu amigo é o retrato de uma cidade que, em troca do progresso econômico, enfiou sua alma no cu, com muita areia, asfalto e concreto.


"Eu desisto
Não existe essa manhã que eu perseguia
Um lugar que me dê trégua ou me sorria
Uma gente que não viva só pra si
Só encontro
Gente amarga mergulhada no passado
Procurando repartir seu mundo errado
Nessa vida sem amor que eu aprendi
Por uns velhos vão motivos
Somos cegos e cativos
No deserto do universo sem amor"

- Taiguara

Um comentário:

Tânia Carlos disse...

Tudo o que você escreveu mexeu MUITO comigo. É estranho como até alguns meses atrás eu era uma dessas pessoas de "veias pulsantes". Foi só conhecer o mercado de trabalho e pronto, minha adolescência foi embora.

É estranho ver o que aconteceu com os meus amigos também. Alguns deles eu já não reconheço.

As pessoas ficam cada vez mais condicionadas às exigências, aos padrões - elas já não pensam, perdem o olho crítico, a vitalidade. Esquecem a espontaneidade. Em Taubaté, em São Paulo, em todos os lugares... As pessoas estão sempre na correria.