domingo, 25 de maio de 2008

Existe muita gente na favela?

Texto: Tati Domiciano

“Mamãe, porque aquele menininho está sem sapatos e oferecendo chicletes?”, pergunta o menino. Junto com a mãe e a babá eles caminham bem atrás de mim. Percebi, com uma rápida olhada para trás, que eles tentavam me passar pelo outro lado da calçada. Neste momento, fiz um pequeno movimento para a esquerda – afinal, não poderia deixar eles me ultrapassarem sem ouvir o que a mãe ia dizer ao pequeno. E a resposta veio rápida. “Ele é um menino pobre. Por isso está sem sapatos e vende bala”, tenta finalizar a mãe.

Querendo mostrar toda a educação que lhe foi dada na escola particular o menino responde: “Se ele me oferecer o chiclete eu aceito”. A mãe, mais do que rapidamente, explica que ele não pode pegar o doce porque o menino o está vendendo. “Aliás, mamãe, como tem gente vendendo coisas nesta rua! Tem sempre gente pra comprar?”. Confesso que fiquei surpresa com a pergunta e também ficou a mãe, que, inutilmente, tenta acabar o assunto. “Sim, filho, as pessoas sempre estão dispostas a comprar alguma coisa”. A conversa estava interessante, então diminui o passo.

Como uma folha de papel, que faz cortes superficiais, mas doloridos o menino faz outra pergunta. “Então por que ninguém compra o chiclete que o menino tá vendendo?”. A mãe respira fundo, pelo som da voz parece que conta até dez, e outra vez tenta por um ponto final naquela conversa sem sentido (pelo menos para ela). “Não sei, mas deveriam comprar, pelo menos assim ele voltaria para a favela”. Agora, sem saber, a mãe entrou numa área confortável para crianças da idade do filho dela. É uma fase, inúmeras vezes explicadas por especialistas, em que as crianças querem saber tudo, descobrir o mundo. “O que é uma favela?”, ataca o pequeno sábio. “É onde os pobres moram e não é um lugar bom. Por isso você tem que dar valor ao que tem e comer toda a comida que a mamãe coloca no prato para você”. Esta foi a tentativa da mãe de entrar num assunto que ela domina, ou tenta dominar: fazer o filho comer toda a comida. “Mas eu como tudo mamãe”, e agora ele estava zangado.

Vinte segundos de silêncio. Outro golpe certeiro para a mãe. “Existe muita gente na favela?”. Surpreendente mais uma vez. Crianças estão sempre abertas para o conhecimento. Por que deixamos esta fase para trás? Para abrir um parênteses e citar Nietzsche e Schopenhauer, sentimos falta das maravilhas da infância porque esta é a única época despreocupada, sem lembranças do passado. Schopenhauer completa afirmando que nesta fase o cérebro já funciona plenamente e por isso é chamada de época da inocência e da felicidade.

Enquanto pega o filho no colo a mãe só sabe balançar a cabeça e responder repetidamente “sim, sim, sim, sim”. Não consegui mais fazer com que eles permanecessem atrás de mim. Só pude acompanhar o menino de perguntas inteligentes se perder no meio da multidão enquanto a mãe continuava a balançar a cabeça. Tudo foi resumido num simples “sim, muita gente mora na favela”. A mãe preferiu não perder tempo e explicar para o filho que vivemos um tempo de conceitos invertidos. O centro há muito foi tomado pela periferia e se tornou a periferia da periferia. Ela preferiu não explicar que grande parte dos moradores da favela vive com menos de 300 reais por mês. Preferiu ignorar o fato de que apenas 15% da população que vive hoje na periferia deseja deixar a favela. Ao vendar seus próprios olhos a mãe também tira do filho o direito de enxergar o mundo como é.

“É preciso ter o caos dentro de si para dar origem a uma estrela bailarina”, Nietzsche em Zaratrusta.

4 comentários:

Unknown disse...

Infelizmente Tati essa ainda é uma forma, talvez a mais clássica usada para educar os filhos. Esse seu recorte me lembrou o filme Império do Sol e toda a trajetória do jovem garoto inglês, que ilhado em seu mundo de luxo, fartura e futilidades não imaginava que do lado de fora de sua suntuosa mansão existisse tanta pobreza e violência gerada pela guerra e alimentada pela miséria.

Beijos

Anônimo disse...

Será que a mãe dessa criança saberia, mesmo se quisesse, dizer à criança o que é realmente uma favela e como são as pessoas que moram lá? espero que essa criança saiba um dia dizer à mãe...

tati, já fiz esse comentário antes mas suas citações de nietzsche são realmente muito bem colocadas

Tati Domiciano disse...

Mauro! :) Precisamos nos encontrar um dia e conversar um pouco sobre Nietzsche. O Diego me disse que vc é um grande entendedor da filosofia dele... Bjos, Tati

Anônimo disse...

Clap, clap, clap!
Muito bom texto!