segunda-feira, 19 de maio de 2008

Uma questão de ponto de vista

Texto: Tati Domiciano

Oito e meia da manhã. Céu fechado. Nenhum facho de luz. Tênis nos pés, sapato na bolsa e pouca disposição pra começar o trajeto. “Bom dia Francisco!”, digo. “Bom dia Tatiane! Tá levando o guarda-chuva? Hoje vai chover”, ele responde. -- E quando que não chove nesta cidade? – eu penso. Um passo de cada vez e o caminho se descortina na minha frente. Alameda Tietê, Alameda Lorena, Rua Oscar Freire, meu destino.

“Bom dia, Tati! Bom trabalho pra você”. Esse é o Roberto, segurança de uma das lojas nababescas deste shopping a céu aberto. Diminuo o ritmo. Ainda não conheci ninguém que se interesse tanto pela conversa alheia como eu. Ainda à paisana e de jornal nas mãos, outros dois seguranças discutem. “O pai matou a Isabella”, diz um. “É, mas primeiro foi a madrasta. O pai foi quem jogou a menina pela janela”, responde o outro. “Ainda bem que estão na cadeia”, finaliza o primeiro. Fico contente com esta cena. Não pelo assunto que eles discutiam, mas porque eles tinham informação nas mãos.

Cruzo a Rua Bela Cintra. Agora, umas cinco garçonetes, de um badalado café, conversam sentadas na porta da loja ainda fechada. “Putz, preciso fazer a maquiagem, você tem batom aí?”. “Tenho um maravilhoso que acabei de comprar”. Mulher é mulher... Passo pela Haddock Lobo. Em frente a cada loja, nos bancos de design contemporâneo, os funcionários parecem se acomodar. Tiram os tênis e revelam os sapatos escondidos nas mochilas (ufa! Não sou a única). Empregadas – que só podem ser identificadas porque usam aquele uniforme – passeiam com os cachorros, provavelmente da patroa, já que está muito cedo pra ela mesma sair com seu bichinho de estimação.

Atravesso a Augusta e é no próximo cruzamento, Alameda Ministro Rocha, que encontro com esta senhorinha. “Eu não vou atravessar deste lado porque ainda sou jovem pra morrer e tenho meus filhos pra cuidar”, fala sozinha. Ela é pequena, pele marcada pelo tempo, cabelos brancos enrolados num coque meio displicente, óculos grandes. Carrega três sacolas de supermercado e uma bolsinha, que eu deduzo seja onde ela guarda o dinheiro. “Vamos atravessar do outro lado porque ali o sinal fica fechado para os carros”, respondo para ela. E este foi o ponto de partida da conversa. A senhorinha me fala que acordou cedo porque a patroa queria tudo fresquinho para o almoço. Conta que a patroa está relutante em lhe dar os 200 reais de aumento e que já faz algum tempo que ela não consegue ir pra casa. “Você sabia que ela me conheceu lá no Hospital das Clínicas? Eu ia trabalhar só dois meses nesta casa, porque ela sofre de depressão, agora já faz dois anos que estou lá e ela não quer me dar um aumento?”, reclama a senhorinha com uma feição doce e dura ao mesmo tempo. Ali, decidi que eu seria apenas uma ouvinte. Ela precisava falar com alguém e eu, sem titubear, cedi meus ouvidos. Ela me deixou na porta do escritório e agradeceu pela paciência. “Desculpe te encher com meus problemas e obrigada pela companhia”, ela disse e saiu.

Ah, como eu gosto da Oscar Freire nas primeiras horas da manhã! No fim do dia a rua é outra. Toc, toc, toc. Saltos de grife martelam as calçadas, bolsas de marcas européias flutuam entre as pessoas. Os bares estão lotados e os bancos, que antes acomodavam os funcionários, agora servem de apoio para sacolas de compras. Buzinas e intermitentes buzinas. A madame decidiu parar o carro no meio da rua para o manobrista ir buscar e a madame atrás não tem paciência para esperar. Buzina novamente. Blá blá blá. Burburinho. O cão late em busca de atenção do dono (sim, porque depois das sete é status levar o cachorrinho pra passear). Onde está toda a calmaria? Parece outro mundo. Por sorte, amanhã é um novo dia. E eu espero encontrar a senhorinha novamente.

Um comentário:

Anônimo disse...

uma coisa que me angustia nas cidades grandes é que a possibilidade de você ver as pessoas novamente é ínfima. Aqui em Campos você olha uma garota interessante na rua, depois a vê em outros lugares, pergunta sobre ela. Agora numa cidade grande o olhar e a memória têm que estar afinados para guardar momentos únicos. Acho que é por isso que você consegue descrever com mestria o cotidiano paulistano, já desenvolveu essa sintonia dos sentidos para captar as raridades do dia a dia.

Em porto alegre uma vez, eu o sieg estávamos andando de ônibus e uma garota pediu para sentar do lado dele (havia outros lugares disponíveis) e estava claramente dando sinais de interesse. Quando descemos do ônibus eu, amigo pressionador, já fui logo dizendo "Pô cara, nada?" Ele me disse calmamente "Relaxa,amanhã a gente pega o mesmo ônibus que ela novamente, tem a semana inteira ainda". Doce ilusão, nem sinal da menina nos dias seguintes. Se fosse em Campos já estariam casados. rs