quinta-feira, 15 de maio de 2008

O samba se perdeu




Texto Daniel Faria

MÚSICA


Meu caro amigo Boi [Fernando Lalli] questionou-me ao responder uma de minhas postagens [Pobrezinha da Isabel], onde foi que a música popular brasileira se perdeu. Pois bem, tentarei analisar o universo do samba, e, principalmente o dos sambas de enredo, que é o gênero que mais ouço e curto.

Ao contrário do que as pessoas pensam o samba de enredo não é uma obra que serve apenas para embalar os churrascos de final de ano, as festas de reveillon e os bailes de carnaval. Algumas obras tornaram-se clássicos da MPB e ultrapassaram o quintal das escolas de samba para serem perpetuadas nas vozes de intérpretes como Elis Regina, Emílio Santiago, Marisa Monte, Caetano Veloso, Elza Soares, Lenine, Fernanda Abreu, Clara Nunes, Maria Bethânia, Jair Rodrigues, entre outros.

Quando o batuque deixou de ser considerado um ato subversivo e digno de punição por parte das autoridades, a sociedade brasileira começou a perceber a riqueza musical e cultural advinda das periferias e morros. Do interior das favelas cariocas nomes como o de Cartola, Nelson Sargento, Ismael Silva e tantos outros impulsionaram a aceitação por parte dos formadores de opinião do trabalho feito pelos pobres e boêmios freqüentadores de biroscas.

O documentário Cartola: Música para os olhos mostra claramente o respeito que o compositor conquistou perante as gravadoras e os músicos influentes de sua época. O bar ZiCartola foi dado a ele para que pudesse deixar de trabalhar como pedreiro e vivesse só de música, mas infelizmente ele não soube administrar o negócio, que acabou sendo fechado.

Voltando ao tema samba de enredo, as composições foram se adequando com o passar dos anos, os primeiros sambas falavam das belezas naturais do Brasil, da mulher, do carnaval e alguns exaltavam a história oficial e seus heróis. O Império Serrano e a Portela possuem composições históricas sobre os temas nacionais.

Na década de 1960, alunos das escolas de Belas Artes começaram a participar da confecção dos desfiles, principalmente dos Acadêmicos do Salgueiro. A partir daí, a vermelho e branco iniciaria uma trajetória interessante e um processo de dar vida a personagens até então marginalizados pela história. Dessa ousadia nasceu Zumbi dos Palmares, Aleijadinho, Dona Beija, Chica da Silva e Chico Rei.

As composições eram ricas até porque os compositores eram pessoas simples, mas nascidas ou introduzidas com maestria dentro do universo do carnaval. Não estavam ali por dinheiro, nem por vaidade. Respiravam o oxigênio puro e etílico que inspirava naturalmente qualquer ser humano.

A Sapucaí se tornou o grande divisor de águas do carnaval carioca e da própria história do samba de enredo. Os desfiles passaram a ser cronometrados, militarizados. Vários fatores externos começaram a fazer parte das agremiações desde que elas desceram o morro e pisaram com dignidade o asfalto.

Lentes, flashes, vendagem de discos, direitos de transmissão, modelos, peitudas, bundudas, bicheiros, contravenção e captação de patrocínio da iniciativa privada. Tudo isso, tornou-se preocupações das agremiações. O samba que deveria embalar, seduzir e se eternizar virou meramente ilustrativo e coadjuvante da apresentação. Uma simples trilha sonora.

Cada folião deve permanecer na avenida por um tempo estipulado. Porém, desfilando ao som de um samba composto por Martinho da Vila, ele com certeza vai estourar o tempo. A levada dos samba de Martinho são totalmente cadenciadas e seguem o estilo clássico do samba antológico, mas a nova geração acostumada a outros sons já misturam com maestria e facilidade elementos do axé e do frevo a suas composições, o que acelera o BPM e conquista resultados positivos no quesito harmonia [canto e dança]. Embora, hoje, o brincante pule e não sambe. Martinho ainda participa das disputas de samba de enredo na Vila Isabel, mas suas obras têm esbarrado na trave.

A poesia foi suprida pela letra de fácil absorção. O turista não precisa conhecer a beleza estética de nossa Língua Portuguesa, basta que ele "move it" e tire fotos pra mostrar que participou de um dos rituais tribais mais conhecidos do Novo Mundo.

Com isso, sambas sutis como Lima Barreto [Unidos da Tijuca 1982] ficam cada vez mais raros de serem escritos. Entre as sacadas da obra está esse trecho que acho muito rico: Mesmo sendo excelente escritor/ Inocente, Barreto não sabia/ Que o talento banhado pela cor/ Não pisava o chão da Academia.


Infelizmente ao passo em que a escola de samba evoluiu ao patamar de entidade cultural, os sambas tornaram-se mais precários para atender a vários anseios. Pois, as agremiações hoje são tão mutantes e mutáveis que transformam qualquer tema em carnaval.

Os apocalípticos irão ranger os dentes sempre que uma nova mudança acontecer. Sempre que uma obra do tipo [oba oba] for escolhida. Acompanho desde 2003, a escolha de sambas e confesso que os que eu gosto na maioria acabam perdendo. Daí fica aquela dúvida: Será que meu gosto não é tão apurado assim?
Enfim, o samba se perdeu a partir do momento em que toda uma cadeia de situações, ações e aspirações vieram beber dessa fonte. Não há mais romantismo, todos têm contas a pagar, filhos pra criar. O boêmio de hoje é diferente, graduado, assalariado, talvez pague pensão pra sei lá quantas esposas e filhos. Ele não quer ser como Noel Rosa, que teve uma vida breve, ele quer envelhecer sob um teto de preferência quitado e com seus filhos e netos bacharéis.

Dedico esse texto ao cantor Jamelão [José Bispo Clementino dos Santos] que na última segunda-feira (12) completou 95 anos. Espero vê-lo novamente à frente dos microfones da Estação Primeira de Mangueira.

4 comentários:

diego sieg disse...

é ditinho... tive uma verdadeira aula de samba agora! rs. muito bom o texto!

bom, mas essa mudança não chega a ser uma coisa exclusiva do samba, acredito que quase todas as expressões artísticas atuais tenham sofrido alguma alteração negativa. Chega a ser uma pena...

isso ae negrinho... Carnaval tá quase ai outra vez!

só alegria!rs.

sorte sua não ser corintiano!!rsrsrs.

Anônimo disse...

O mercantilismo cultural subiu o morro.

Normal. Fazer o quê.

Obrigado, sr. Faria.

Unknown disse...

Bem Sieg, não diria que foi uma aula sobre o tema até pq me considero apenas um principiante no assunto.

Abraço

Unknown disse...

Então Sr. Fernando! Esse foi o preço pago pela inclusão da classe média dentro do universo do carnaval. Não sei se foi o mercantilismo que subiu o morro, ou o morro que a partir do momento que desceu pro asfalto se burocratizou e se tornou mercadoria nas quatro noites de folia.

Abraço